GAL: xs meninxs, novas e velhas novidades.

Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.

Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
(excerto de “O Amor” de Maiakovski)

Fazia era tempo que ela me enjoava. Não sei se o problema era ela o ou apego que tínhamos aos debates do tipo Fla x Flu (em verdade, eram mais Fla x Botafogo e uma ou outra reivindicação vascaína). Naquela década de 1990, dedicávamos expedientes inteiros aos tribunais da orla da UERJ. E dos tantos assuntos: os 6%, filosofias, greves, traições, assembleias, o PCdoB, poetas malditos, PSTU, corações partidos, o PT, a DS (jamais imaginamos que estaríamos como estamos) ... bom mas, entre tantos assuntos, sempre chegávamos a eles: Gal ou Bethânia, Chico ou Caetano [O Gil sempre foi meio preservado. Eu mesma só fui saber mais dele quando Sérgio me levou para ver Doces Bárbaros (o filme) no CCBB]. Tínhamos argumentos definitivos. Eu, do time da Bethânia e do Chico, acusava a Gal de perfeição excessiva; Caetano eu achava pitizeiro e, ainda, não admitia seu brizolismo. Ao contrário, Chico e Bethânia eram tudo que eu mais admirava: a precisão poética de um e a voracidade da outra. O que faltava de conteúdo político nas falas de uma (que felizmente sempre se pronunciou pouco), no outro, sempre lâmina afiada. Nada me parecia tão bem-acabado quanto o álbum Chico & Bethânia (1975). A sequência "Sem Fantasia", "Sem Açúcar" e "Com Açúcar, Com Afeto” reunia novamente gregos e baianos e cantávamos em duetos, quartetos, sextetos... ébrios, emocionados e patéticos. Eu, que sempre tive uma nota a mais de drama, gostava especialmente de cantar a "Camisola do Dia”, do Herivelto Martins, que a Bethânia atribuía todos aqueles érres.

* * *

Mas, o que ia dizer era que a Gal me enjoava desde esses tempos. Claro que não fui imune ao “Sorriso do Gato de Alice” (1993) e “Mina d'Água do Meu Canto” (1995) e acho que era fingimento a frieza diante dos álbuns dos anos 1970. Lá pelo meio dos anos 1980, Gal dedicou um bom tempo e energia a um gênero popular/comercial e gravou despudoradamente a dupla Sullivan/Massadas e congêneres; fez, também, álbuns corretíssimos, afinadíssimos e tão chatíssimos que poderiam tocar em qualquer elevador. Meu enjoo cristalizou.

Quando, em 2012, veio a notícia de que a Gal havia gravado um CD só com canções do Caetano e com uma pegada eletrônica fiquei intrigada. Primeiro, porque a esta altura já havia perdoado todos os (meus) pecados do Caetano. Segundo, porque não tenho ouvidos para essa tal pegada eletrônica... E “Recanto” me quebrou as pernas e as convicções. Quando o álbum subiu ao palco tomei um susto com a força daquele espetáculo pulsante, vivo... A Gal, a esta altura uma mulher de 70 anos, absolutamente linda, entregue, inteira!!! Foi quando pensei: as vanguardas lhe vestem como uma segunda pele e só o Caetano poderia vestir-lhe novamente.

“Recanto” foi para o palco da cidade: o Circo Voador e lá encontrou uma outra plateia. Talvez uma plateia que jamais tenha se dado ao trabalho de se enjoar da Gal. Uma plateia, a quem ela chama de galera (tudo bem, Gal, eu também falo galera) que se delicia e troca, com a fatal, frescor e reverências. Depois de “Recanto”, vieram “Estratosférica” e “A Pele do Futuro”, diferentes entre si e que se encontram no mesmo Circo em que Gal traz para a ribalta: meninos, novas e velhas novidades.  Os três álbuns possuem registros ao vivo, apenas um deles gravado no Circo Voador, mas, minha imaginação leva todos os registros para lá.

Há algum tempo venho me dedicando a montar uma lista que fale desta Gal que surge depois de “Recanto” e traz canções que de tão antigas, para xs meninxs, são novas. A Gal que desce até o sol do plexo e que não vai mais tão longe no apelo: “ressuscitaaaaaaaaaa-me”. A Gal que espanta, abusa, arranha o canto e, principalmente, a Gal que emociona como emocionam as coisas que vemos pela primeira vez.

* * *

Hoje, as disputas entre quem são os nossos melhores perderam totalmente o sentido. Dizem até que é sintoma de amadurecimento quando ficamos menos binários (alguém avisa isso para o presidente, por favor). E mesmo naquela época, ao fim e ao cabo, concluíamos a jornada a plenos pulmões bradando “Último desejo”: Noel sempre foi consenso [Aliás, a gravação de Gal de “Último desejo” para o Song book do Noel é de chorar]. 

Eu, sigo devota de Bethânia, cada vez mais emocionada com o Gil (queria que ele fosse meu amigo), estupefata com o primor do Chico, com as reinvenções do Caetano e com a força estranha e viva que é a Gal. Ah, também sigo vertendo uma ou outra lágrima por “Último desejo”. 

Aqui o link da playlist no Spotfy  Gal: xs meninx, novas e velhas novidades



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