Hoje tem visita para o jantar

Era uma versão urbana de Cosme, o Barão das Árvores, habitava muros, telhados e a copa de uma goiabeira (bem antes de andarem vendo Jesus por lá). Ali, Clara vivia suas fantasias sebastianistas salvando reinos e donzelas. Apenas desse jeito sabia-se importante e corajosa. Quando descia, sob a copa das árvores, ignorava-se. Não temia a queda, tão pouco a dor, temia a mãe. Clara nunca soube ao certo o porquê daquilo, mas também nunca questionou, somente sabia que caso caísse e se machucasse, sua mãe lhe daria uma surra. Não aprendeu na porrada, não deixou de se machucar, apenas passou a ter seus métodos. Mantinha cuidadosamente uma caixa de primeiros socorros: gaze, esparadrapo, mertiolate e, acreditando piamente nos ensinamentos maternos limpava, sozinha, seus ferimentos com álcool. Só o que arde, cura, dizia Margarida.

Na casa árida viviam só as duas, sem parentes, sem amigos, sem animais, sem visitas, sem música. Acostumaram-se ao silêncio somente rompido nos dias de lambada e pelos eventuais assovios de Margarida que, por motivos opostos, causavam arrepios na filha.

Havia dias que Clara não voltava em casa. Quanto mais não voltava, mais medo tinha de voltar. Indiferente ao fato de que ela não era mais criança e mais indiferente ainda aos dias de sua ausência, Margarida, com a secura de todos os dias deu a ordem de todas as noites: vai tomar um banho e ajeitar esse cabelo que hoje tem visita para o jantar. Espera. Como assim, visita para o jantar? Essa última frase era novidade. Clara não via a mãe há duas semanas e ainda estava sob efeito das suas recentes descobertas. Mesmo assim, nada disse, nem nada lhe foi perguntado. Obedeceu, apenas.

Voltou aprumada para a sala e, um pouco aturdida, interrompeu o cumprimento já inquerindo de onde a visita vinha. Ela sorriu só com metade da boca, na outra metade tragou longamente o cigarro apontando a mão espalmada para a cadeira: sente-se, menina, eu e sua mãe somos velhas amigas. Nesse átimo, Margarida sumira e Clara seguia imóvel ouvindo: havíamos perdido contato por um tempo, na verdade acho até que ela tentou fugir de mim. Mas não houve jeito, encontrei-a logo que veio para o Rio, antes de engravidar de você. Acredita que sua mãe nunca me deixou vir aqui? Tinha medo do que a vizinhança poderia falar e usava a desculpa que você era pequena que precisava dela e mais um monte de outras bobagens. 

Laura tinha o sarcasmo da embriaguez e era mais íntima da casa do que Clara e até mesmo do que a própria Margarida. Fumava na sala, descompunha as almofadas, ouvia música, tomava cerveja e gargalhava. Gargalhada era coisa quase imoral dentro daquelas paredes.

Clara encontrou a mãe no canto cosida às paredes e insistiu em saber o que estava acontecendo, quem era aquela mulher? Margarida não respondia, olhava através da filha repetindo que não tinha mais como evitar. Aquele olhar vazio gelou-a. Ela já tinha visto outras vezes: o olhar vinha nos dias de agonia em que sua mãe sibilava uma melodia que por muito tempo Clara perguntava de onde vinha. Margarida nunca respondeu. Aliás, Margarida nunca respondia nem contava nada. 

Algumas semanas antes daquela noite, respostas vieram. Clara tinha acabado de fazer 18 anos e foi acompanhar a vizinha para ver uma cantora que ela mal sabia quem era e ainda achava que tinha voz de homem. Mas, como era grata ao abrigo protegido de D. Amália em dias de fúria da mãe, não recusou o pedido. Achou tudo muito estranho, mas totalmente hipnotizante. Quando entraram os acordes grandiloquentes de Uma canção desnaturada, Clara perdeu o ar. Era a melodia misteriosa sibilada pela mãe anos a fio. Ouvia atentamente, mas os versos chegavam criptografados aos seus ouvidos. Só na última estrofe compreendeu:

“(...) Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído”

Saiu de lá desnorteada. Quis saber que raio de música era aquela. Quem tinha tido coragem de escrever aquilo. D. Amália explicou um pouco, disse que era da peça Ópera do Malandro do Chico Buarque, tentou contextualizar a personagem a ainda contou que, até onde ela sabia, a única vez que sua mãe tinha ido ao Teatro foi quando ela a levou para assistir a Ópera do Malandro, mas que depois que ela nasceu, Margarida nunca mais aceitou ir a lugar nenhum. Nada aquietava Clara. Mal ouvia o que a vizinha dizia, o eco dos versos era mais alto e, depois de deixá-la em casa, não entrou na sua porta que era em frente.

Pediu abrigo a uma colega de escola que, ao contrário dela, muito sabia sobre Chico, Bethânia, a Ópera do Malandro e etc e tal. Clara passou os dias ruminando as canções e as descobertas, foi como voltar à copa das árvores. Acabou decifrando a origem de outra melodia que sua mãe cantarolava cada vez que tomava aquela bebida vermelha. Sempre que ela pegava a garrafa de Campari, Clara escondia-se sob a mesa à espera da sua parte naquele instante de vida. Era O meu amor que, de olhos fechados, copo na mão e sorriso desenhado, a mãe balbuciava. Em seguida chorava muito, deitava o copo e o corpo no tapete de sala e chamava Clara para o abraço de concha. Era o único momento em que ela sorria e o único momento em que abraçava a filha.

Clara desceu das suas copas e tomou coragem de voltar para casa. Foi quando a viu sentada à mesa, alhures, finalmente entendeu porque a mãe lhe batia quando se machucava. É que Laura lhe repetia na sua cabeça, desde sempre: ensine a curuminha que ela só poderá brincar se conseguir, ela mesma, sarar suas feridas. Naquela noite viu Margarida aceitar sua loucura e, passado o espanto, sentiu uma certa redenção naquilo tudo. Antes de ir se deitar, a mãe segurou-lhe as duas mãos, olhou-a com uma ternura de nunca e disse: essa visita que veio para jantar não é visita, ela veio pra ficar. Agora, você já pode ir brincar.


Foto e manipulação digital: Álibis & Alfarrábios


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