Cartas
Há semanas carregava aquele peso com encantamento. Dias antes recebera uma mensagem de um amigo querido, nem tão amigo assim, mas, de certo, querido. Nem tão amigo assim e contando que havia tentado contra a existência (ele não contou desse jeito, mas ela adorava o verso “tentou contra existência num humilde barracão...”).
Há semanas lia as cartas de Andrade para Andrade. Ali aprendia um pouco sobre poesia e alguns dos dilemas modernistas. Passou a implicar com o Drummond e nem sabia porquê. O coitado não estava no livro para se defender, as cartas eram de um Andrade só. Desconfiava severamente que seu interesse não era pela poesia ou algo mais nobre, mas pelo que podia escapar de íntimo daquelas cartas.
Quando recebeu a mensagem não sabia o que dizer, se ia dizer. E quem se cala diante de uma declaração dessas. Mortificou-se de culpa. E se tivesse mais perto. Não eram tão amigos assim. Decidiu. Não escreveria uma mensagem eletrônica, mas também não ligaria (ligação é íntimo demais). Veio a solução: ia escrever-lhe cartas. Não se escrevem mais cartas... a era digital... a globalização... “cartas de amor ridículas, não seriam cartas de amor”... nesse ponto já havia esquecido das cartas que escreveria.
Era um dia tedioso como tantos. Há semanas já havia desistido dos Andrades. No escorregar dos dedos na tela deteve-se:
“Poupatempo Itaquera abre inscrições para voluntários do Escreve Cartas. Para participar do projeto é necessário ter boa caligrafia, muita dedicação e respeito ao próximo. Além disso, é necessário ter disposição, paciência, saber guardar sigilo do que escrevem, manter uma postura neutra durante a redação da carta e trabalhar com prazer”
Anhangabaú - Sé - Pedro II – Brás - Bresser Mooca - Belém. Ainda falta. Para onde vão essas pessoas todas. Esse horário não é contra fluxo? Em São Paulo só existe fluxo! Não iria esmorecer. Lembrou-se dos Andrades, do amigo quase-suicida (quiçá suicida, nunca mais procurou saber dele). Tatuapé - Carrão - Penha - Vila Matilde - Guilhermina-Esperança. Quase lá! Não escrevemos mais cartas! Não se escrevem mais cartas... a era digital... a globalização... “cartas de amor ridículas, não seriam cartas de amor”, Simone Beauvoir escreveu suas cartas ridículas a Nelson Algren. Essa gente humilde irá nos resgatar a poesia. Que vontade de chorar! Patriarca - Artur Alvim. Imaginava-se boureau retrô, letra caligráfica. Corinthians-Itaquera.
Analfabeto de pai e mãe e madrinha preta, caprichava nas rimas. Não faltava jeito para dizer ao seu coração, que vivia no sertão, que amor é feito balão de são João que sobe, sobe, sobe, mas não apaga não. Fazia mais de ano que deixara Riachão. Quando despencou gravava sua emoção. Exibia orgulhoso o Itaquerão.
Na primeira hora de guichê não perdeu a fé. Na segunda hora, de que adianta esse cartaz. Na terceira hora, sacou o bloco, rabiscou cruzes e bolinhas. Na quarta, avistou. Rapaz novo, forte, taludo quase bonito. Apressou-se em virar as páginas do bloco, alinhou as canetas, ajeitou-se na banqueta, sorriso empático, compaixão burguesa. Lá vinha seu primeiro confessor. Fazia mais de semana que buscava um jeito. Decidiu. Não mandaria zap zap, mas também não ligaria (ligação é triste demais). Veio a solução: soube na obra que na estação tem uma moça que escreve cartas bonitas que nem refrão. Ei moça é a Sra. que escreve? Avisa para a dona Conceição que João num guentou não. Morreu estatelado no chão. Não atrapalhou a construção. Tem mais nada que contar não. Levou mais tempo desdobrando o origami do endereço que escrevendo a missiva. Levantou os olhos apta a juntar as mãos espalmadas, trazê-las ao queixo e antes que pudesse inclinar a cabeça para o ritual... perdia seu rapaz na multidão.
Na volta preferiu taxi. Julgou-se merecedora, afinal.
Nunca mais pôs os pés em Itaquera. Esquecida das cartas, soube do amigo, nem tão amigo assim, pelo Instagram e teve certeza de que tudo estava bem. Juntou as mãos espalmadas, trouxe-as ao queixo e inclinou a cabeça. Gratidão.
Havia semanas que se livrara daquele peso. Descia a Rua dos Pinheiros...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
ResponderExcluirE a metáfora? Qual é ?
ExcluirAh, sou eu, Antonio
ResponderExcluirTexto maravilhoso..
ResponderExcluir