Eu não quero dar spoiler para o pai de santo



- Não seja ridícula, é um documentário e documentário não tem spoiler!
- Falou a cineasta! Pois, para mim tem. Se eu não sei tudo que está lá e você me contar vai ser spoiler
- Eu não quero dar spoiler nem para o pai de santo, vou dar para você?
- Como assim, que novidade é essa?

Ela tem teimas, cismas, invencionices e um bom bocado de convicção, mas, suas fronteiras são permeáveis. Tudo ela sente. Tudo, e tanto, que fica corriqueiro sofrer e, de tão corriqueiro, banal. Ao fim e ao cabo, ri para si pelo seu acento teatral. Rimos, na verdade. Quando chora, é como heroína de novela em silêncio e lágrimas em câmera lenta. Sofrida e altiva.

Eu, que sou especialista na sua cena, sei que ela também chora feio, empapuça de ranho longas tiras do rolo de papel higiênico. Aliás, estávamos em um desses dias, quando ela veio com esse papo de pai de santo. Segundo ela, os tempos exigiam providências (gostava muito de definir quais seriam as providências enquanto chorava feio, achava digno, sei lá): já tinha procurado um bom advogado, estava cuidando da maluquice, então, faltava cuidar da sua espiritualidade. Falou assim “cuidar da espiritualidade” em um tom quase acadêmico e seguindo a argumentação organizada... “encontrei um pai de santo marxista” ... “Tá bem, estou inventando... digamos que seja de esquerda”. Porque ela colocou a insígnia marxista no pai de santo até agora eu não sei...

- E por que você não quer dar spoiler para o pai de santo? Seja lá o que isso queira dizer...
- Espera, deixa eu falar... é dificílima essa binariedade inamalgamável...
Pensei “hein? binariedade inamalgamável?” E quando vi já estava se pegando numa questão que, para ela, parecia muito filosófica e que eu chamaria depois, cheia de deboche (ela odiava!), de mito da complexidade. 

Começou seu discurso, levantou-se pegou bebida, se perdeu um pouco no que estava fazendo, um pouco no que estava falando... rendi-me e preparei outro baseado. Quando ela desanda a falar... apega-se brutalmente aos argumentos e soma a eles mãos, entonações e palavras recém aprendidas... uma espiral que, misericórdia, haja paciência! Acho lindo... Bom... acho bonito que ela se empolgue tanto.

O apego não é só aos argumentos é, também (quem sabe, antes de tudo), às palavras. Vai desenhando as palavras para os argumentos.

- Pelamordedeus, garota, o que isso tem a ver com o que a gente estava falando antes? 
- Tudo! Veja bem, (odiava esse “veja bem” que ela aprendeu com uns economistas de São Paulo) estou falando do meu ceticismo e da necessidade de me conectar com uma dimensão espiritual...

Cortei-a meio impaciente e exagerando no anasalado disparei: 

- Yin Yang, noite dia, preto branco, fogo água, Deus Diabo....blá blá... o mito dos seres complexos que carregam em si uma binariedade inamalgamável... Óh dúvida cruel... (fiz a cena com a mão pousada na testa com a palma para cima, exagerando ainda mais do anasalado da voz). Esse dilema já deu! 
- Como sempre, você está simplificando... não estou falando de dúvida, estou falando das dualidades da gente, aquelas que têm força proporcional e fazem a casa ficar na esquina. Dá para um lado, dá para o outro e não sabe se está de frente ou de costas. Eu escrevi sobre isso, lê! 

Ela me obrigava a ler seus textos. Esse chamava "casa de esquina” e começava com uma longa digressão sobre o termo. Uma amiga antiga, sofrida com a dubiedade da namorada que não era bem namorada, talvez nem fosse nada... havia lhe dito: “ela é tipo casa de esquina que dá para um lado e dá para o outro”. Gostou do termo, em parte porque ela mesma tinha um enorme talento para atrair-se pelas “casas de esquina”; em parte, porque adorava uma síntese. Eu, sei que há muitos anos ela usa a expressão, mas agora, no texto, ela resolveu encorpar o conceito.

Enquanto eu lia, ela enchia novamente as taças e inventava uma coisa para comer. Quase sempre eu não entendia quase nada do que ela escrevia ou queria dizer, só captava as auto referências. Na verdade, talvez eu entendesse, mas não gostasse, sempre reagia dizendo: 

- Um pouco confuso, eu achei.

Tirou os óculos e, posada como Clodovil, cotovelo sobre mesa, haste na ponta do polegar com o indicador, punho dobrado, sobrancelha levantada e um certo ar de entojo: 

- Você não tem abstração, preciso de uma interlocutora mais qualificada... e dava uma bufadinha como os franceses.
- Claro que tenho! Estamos falando da mesma coisa... toda essa sua argumentação confusa é para concluir que somos melhores porque somos mais complexas, porque vivemos as dualidades intensamente, não poupamos abismo... Faça-me o favor! Não somos melhores! Isso é infantil, arrogante e tolo. 
- Falou a equilibrada... Pois, eu acho que aquilo que chamam de equilíbrio é, na verdade, um verdadeiro inferno. Bom é ser de um jeito principal! É muito cansativo ser terra e água na mesma proporção, não equilibra, ao contrário, fica num “seca e molha, molha e seca” sem fim.

Era muito peculiar esse entendimento de equilíbrio que ela tinha. Como disse, ela era apegada às palavras, mesmo que nem sempre fizessem sentido. No entanto, de certo modo, concordávamos:  eu e ela achávamos um saco esse papo de caminho do meio. E, mesmo assim, vivíamos em busca de um tal meio termo. Eu com mais afinco que ela. Mas, devo reconhecer seus esforços. Nesse ponto da conversa era comum que ouvíssemos Elis cantando: “a barra do amor é que ele é meio ermo /a barra da morte é que ela não tem meio-termo”. 

É de tal modo dramática a canção e a cantora que a gente esquecia o climinha da disputa e se reconhecia de novo.

Como uma brincadeira de criança, nós sabíamos exatamente o que iria acontecer e por isso mesmo repetíamos, inclusive, a irritação. Já quase rindo era a hora de dizer: 

- Você sabe, não é? 
- Ah, lá vem você... claro que eu sei: "todo escritor de pouco talento é extremamente autobiográfico". Falou com aquele tom que eu detestava, ficava horrorosa fazendo aquela boca mole e pior, lembrava minha avó.

Verdade que o texto era realmente muito autobiográfico, mas ela tinha razão quando dizia que só era assim, ou só parecia assim, porque eu a conhecia demais. A conversa sempre se encerrava comigo dizendo:

- Está bem, mas quem não te conhece também não vai entender nada do que você escreveu. Eu, pelo menos, tenho o privilégio de te conhecer assim de perto.

Ela sorria, desistindo temporariamente de mim:

- Acho que você tem razão. Não é porque eu gosto de escrever que as pessoas precisam gostar de me ler. No seu caso, leia mesmo sem gostar, não tem problema. 

***
Saiu de casa convicta em não dar spoiler para o pai de santo. Será que deu e nem percebeu?

Não é que eu não acredite. Mas eu não preciso contar nada. Para que ele quer saber meu nome todo? Existe burocracia no outro plano? É outro plano o jeito certo de falar? Acho que não. Vou ver no Google. Presta atenção no que ele tá falando! Será que devia anotar? Que isso que ele está anotando? Ih, já ouvi isso em música. Aganjú não é música da Bebel Gilberto? Acho que é. Gostei. Acho que devia anotar. Agebô, o que será isso? Vou logo avisando que bicho eu não mato. Ufa, que alívio, é só quiabo. Será que quando cai muito búzio de cabeça pra baixo é porque deu ruim? E esse saquinho na mesa é o que? Quanta pergunta! Se concentra na energia. Gostei desse orixá. Vou ver no Google....

***
Hoje, ela me apareceu aqui toda decidida. Dizendo-se representada, tratada, ungida e cheia de providência para tomar: procuração, erva, vela, pedra, tigela, missanga, medicação... argumento, fundamento, tormento...

E porque não cria, agora agia. Nem que fosse para acreditar no que não cria. Só sei que nesses dias de tempestade, a cada trovão ela saúda, ainda tímida e silenciosamente, esse pai recém descoberto.

Mas é porque que eu estou contando isso mesmo? Ah... a história de não querer dar spoiler para o pai de santo. Mas, por que eu comecei a falar disso? Por causa do Caetano. Não! Era por causa de Fevereiros, o filme. Não! Não conta. Ainda não vi o filme.

Para Bié, minha primeira (quiçá única) leitora.




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