Carta à Teresa Cristina ou "como doem as árvores quando vem a primavera".
São Paulo, madrugada de 09 de novembro de 2018.
Teresa,
Acabo de chegar do seu show e gostaria de contar umas histórias cruzadas. Acho que, na verdade, quero usar essa conversa para falar também com todas nós que estamos do mesmo lado da calçada, aquele lado em que bate sol, tem festa, amor e batucada; que tem abraço, afago, acolhida e mãos dadas.
Tinha feito 17 anos há pouco e ainda hoje não sei de onde saiu aquela empáfia toda. Na Tijuca 40 graus, um pouco antes da Ave Maria da Rádio Globo, trajava meu blazer, calçava minhas botas, acomodava zelosamente o chapéu de feltro preto nos cabelos de rabo e partia para o lugar onde aconteceram as coisas mais importantes que eu vivi (bom... ao menos a primeira vez em que realmente aconteceram coisas importantes). Quase tudo que sei, comecei a aprender ali, na UERJ. Quando ia saindo de casa minha mãe dizia: lá vai Zé Keti... E eu, ignorante e orgulhosa, ia. Naquele tempo, não conhecia Zé Keti mas, vez por outra, já te ouvia cantar no Bar do DCE. Era Nana, não era? Ou é o "labirinto da minha cachola"[1]?
Já no agora, Teresa, me vem você com esse Zé Keti[2] que puxa o fio do novelo que vem do chapéu que eu trajava até aquele pousado no centro do seu palco do Sesc Pompéia. Ouvi-la nesta São Paulo esquisitérrima fecha uma lambada de arte potente que andei levando por aqui.
Porra, Teresa, tá foda. Não consigo deixar de pensar que muito mais gente vai morrer, chegam as notícias de mais uma operação criminosa na Maré... "acender as velas, já é profissão..."[3]. Quem ficar vivo vai ter sua subjetividade cassada. Só corpos vivos para operar a máquina. Na real, na real é isso que eu penso e aqui, cá entre nós, tô meio sem saber o que fazer. Por covardia ou necessidade fui ao longo desses anos fazendo escolhas que me mantiveram atenta e crítica (eu acho!), mas distante de uma luta política mais contundente. Minha militância sempre foi periférica e, com o advento das redes sociais, uma militância de sofá. Fui atuando na micropolítica, na afirmação dos meus afetos em ambientes hostis, apostando na gentileza como princípio e na contundência como defesa. E, desde os tempos do chapéu do Zé Keti, usei meu corpo, meus gestos e jeitos para isto. Existir olhando de frente pra qualquer um foi o mais longe que consegui chegar. Hoje, penso, isso não bastará!
Mataram Marielle. Mataram na nossa cara. Mataram para matar sua exuberância. Mataram porque Marielle era o jeito mais bonito e mais potente de resistência. Eu, você e todo mundo sabemos que a grande ameaça representada por ela era simbólica. E esses filhos da puta (aliás, preciso pensar uma forma melhor de me referir a eles, as putas não merecem esses filhos) não sabem o que fazer com a nossa alegria.
Na véspera do seu show fui jogar meu corpo à dança. Era uma noite gelada e chuvosa. Atravessei a passarela do Terminal Bandeira, passei pela Ocupação Ouvidor[4], subi a Líbero Badaró, me desorientei numa ou outra encruzilhada, até chegar à Casa de Francisca onde a boa música é residente principal. Sentei e ainda tocava na minha cabeça uma canção do Gonzaguinha que me acompanhou na caminhada, "Dia de Santos e Silvas", que meus pais viviam a cantarolar. Uma canção dura, como a vida, como o Gonzaga Jr. Uma canção linda, como a vida, como os dias, mesmo os duros.
"A noite desceu sobre a cidade
Nas filas, calor suor cansaço
Meu corpo está que é só bagaço
E se está de pé é de teimoso
Eu, desejando minha cama
Furam a fila e alguém reclama:
Louvaram a mãe do rapaz
Que diz que faz e desfaz"
Eu, Teresa, não sou a trabalhadora dessa música. A universidade pública me salvou. Mas passei boa parte da vida olhando nos olhos dessas trabalhadoras. Vivo do meu trabalho e desde os tempos da graduação em Serviço Social, quando o Gonzaguinha figurava na epígrafe de nove em cada dez Trabalhos de Conclusão de Curso, entendi o que é pertencer à classe trabalhadora. Não somos todas iguais, nem estamos na mesma condição, tampouco somos submetidas às mesmas opressões, mas somos todas trabalhadoras.
Mas, era da noite dançante e brincante que eu queria contar. Era noite do Baile do Papai. Manoel Cordeiro, o papai em questão, comandava o baile com seu filho Felipe Cordeiro e uma banda que produzia uma sonzeira sensacional: guitarradas do nosso Norte, pitadas caribenhas e muito mais coisa que eu não sei nomear, mas que davam motivo de sobra para rebolar. Mesmo com frio, suei até as calcinhas de tanto que chacoalhei. E, ali, de corpo solto, fui feliz.
No dia seguinte, muito impulsionada pela Mônica Benício... Ah, explico. Essa menina me impressiona. Sua jornada por justiça desafia esses escrotos (melhor escrotos que filhos da puta, escroto é uma das palavras mais feias do vernáculo e as putas não merecem esses filhos). Do alto de uma dor inimaginável, Mônica, mantém o sorriso. Naquele dia, ela publicava uma foto de um encontro com o Lenine no aeroporto e criava a hashtag TemposdeEncontrarPessoasQueridas. Então, muito impulsionada pela Mônica Benício, fiz questão de abraçar amigos que tenho na cidade de São Paulo. Túlio Starling, meu amigo mais jovem, me leva, junto com sua linda Nash Laila, para acompanhar um ensaio deles no Teatro Oficina. Em dezembro eles estreiam Roda Viva, mais simbólico, impossível. Puta que pariu (agora a puta é citada com todo louvor): Evoé, jovens artistas! No ensaio, estão fazendo um trabalho de dança, corpo, movimento com um grupo de artistas senegaleses que são a cara de uma São Paulo muito maior que seus coxinhas. O Ibrahima[5], que pelo que entendi, é o cara, não fala uma única palavra de português e por quase duas horas conduziu com corpo e olhar, sob batida dos tambores dos demais, aquele grupo de artistas numa jornada vigorosa de movimento, corpo livre e criação. Fiquei hipnotizada. Refeita. Certa de que há uma saída. Convencida de que a arte pode mesmo nos salvar desses tempos brutos.
Já quase atrasada para o seu show, corri pro Sesc. Porra, Teresa, você começa logo com Opinião! Bem, não podia ser diferente.
"Podem me prender, podem me bater
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião.
Daqui do morro eu não saio não, daqui do morro eu não saio não."
O samba é resistência desde sempre e Zé Keti ainda mais. Como você disse, se hoje ele estivesse vivo ninguém teria dúvidas de que lado ele estaria. Como é bonito te ouvir, Teresa, com os anos seu canto é cada vez mais emocionante, suas escolhas cada vez mais certeiras. E, do alto da minha ignorância musical, acho lindo um lanhado que escuto nos seus agudos. É como se sua voz brincasse com o abismo e ficasse na ponta dos pés da nota certa.
Difícil pensar a "melodia para o Brasil feliz", mas é certo que não abriremos mão de mostrar ao mundo nosso valor e de mãos dadas com "o rei dos terreiros". Ah, se alguém perguntar por nós, teremos amigos, violão e a madrugada como companheira. Tenho certeza que resistir com alegria é o único jeito. Não é o bastante. Mas é o princípio.
Obrigada Teresas, Mônicas, Elzas, Marielles, Ninas, obrigada às Marias... está decidido: definitivamente é melhor ser alegre que ser triste. Nem que seja só de raiva. Sabe por quê? Esses escrotos odeiam nossa alegria, detestam a nossa dança e não suportam nossa poesia. É mais ou menos isso que diz o poema de Alejandro Robino (Instruções para tapear o tempo ruim).
Enquanto eu existir serei verso, melodia... serei canção. Não vai ser fácil, mas é a gestação de uma nova primavera e "como doem as árvores quando vem a primavera"[6]! Enquanto isso, ninguém solta a mão de ninguém!!!!!!
FOTO: A&A, Sesc Pompéia, Projeto Lina Bo Bardi. Novembro/2018
REFERÊNCIAS:
[1] verso de "Jogo de Bola" de Chico Buarque, 2017.
[2] Teresa Cristina, acompanhada de Carlinhos 7 cordas, apresentou nos dias 8 e 9/11 o show Teresa Cristina canta Zé Keti como parte do projeto Samba Imenso em que uma cantora acompanhada de um instrumentista homenageia um mestre do samba.
[3] verso de "Acender as velas" de Zé Keti, 1973.
[4] Ocupação Ouvidor 63, ocupação no centro de São Paulo se destaca pela essência artística de seus moradores, proporcionando oficinas e laboratórios abertos à população. Fonte: Rede Brasil Atual
[5]Ibrahima Sarr e o grupo Seneafrica
[6] verso de um poema do livro "Explicação das árvores e outro animais" de Daniel Faria.
Linda Mirelinha, talentosa é o nome.
ResponderExcluirEmocionada aqui. Pensando muito nas várias formas de militar.
ResponderExcluirLindeza!!!!! Segue amiga ! Fazendo e nos trazendo poesia... nos lembrando que possível seguir alegre "apesar de"
ResponderExcluirLindeza!!!! Segue amiga... fazendo e nos trazendo a poesia... nos lembrando que é preciso seguir alegre "apesar de"
ResponderExcluirNo final do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, vive um axioma: a alegria é a prova dos 9. Evoé!
ResponderExcluirShibaba and kiki Papa.
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