Carta ao Pai ou o país dos ressentidos

Rio de Janeiro, 29 de outubro de 2018.


Hoje o dia amanheceu sem paz. Meu coração está miúdo e eu choro as escolhas que fez esse povo brasilis. As mesmas escolhas que as suas, meu pai. Escolhas pautadas pelo ressentimento.

Eu moro no Rio de Janeiro, em um bairro onde a esquerda festiva faz... festa. E, olha, que festa! A vida da gente não é essa felicidade toda, tem um tanto de gente carregando suas marcas, digerindo suas dores. Mas vai... viver aqui no Condado das Laranjeiras é para quem, de algum jeito, pode se dizer privilegiado. Não preciso explicar porquê, preciso? Para mim, parte desse privilégio é poder imaginar que o mundo todo poderia ser assim. E, aqui no nosso Condado, muita gente pensa assim: que a vida tem que ser boa, e boa para muito mais gente que a gente. Que nessa vida pudéssemos nos encontrar no chorinho da praça que balança o coreto no carnaval. Que pudéssemos ficar juntos na fila da esfirra. Que fôssemos à feira da Glicério no sábado. Que subíssemos a ladeira para o samba do Cardosão e ainda déssemos a volta na Alice. A gente sabe que isso é uma tal "bolha" mas, nos protegemos nela tentando imaginá-la real.

Eu nem sou daqui, mas escolhi viver aqui. Mas, se desde sempre tivesse seguido meu destino certamente não seria nas Laranjeiras que teria vindo parar. Sabe pai, foi você quem me ensinou a desafiar meu destino. Não só você, é verdade. Mas, sua rebeldia e inquietação, seu jeito de questionar, também, seu próprio destino, foram coisas que penso ter querido imitar. Aliás, pai, hoje vejo que tantas outras coisas que meus gestos carregam falam de você. Não sei se você mudou ou se eu mudei. Na verdade, não sei nada, não é pai? Não conversamos. Talvez jamais tenhamos conversado. Aprendi a viver, construir minha caminhada e fazer minhas escolhas sem contar com você. Não foi tão difícil, afinal não sou a primeira nem a última órfã de pai vivo nesse mundo de gente que abandona e é abandonado. Embora seja verdade que jamais tenha entendido o porquê de tanta ausência.

Mas pai, o que eu queria mesmo era ter conseguido entender suas as razões. Talvez entendê-las me ajudasse a compreender um pouco da raiva de tantos milhões de brasileiros pelo PT a ponto de eleger diretamente, ou por omissão, um sujeito que diz o que ele diz, que reúne em torno de si as expressões mais toscas da nossa tradição política, que é incapaz de falar de um projeto de nação que não passe pela violência e pela exclusão. Eu nem sei ao certo o que você fez com seu voto, te chamei pra conversar, disse que gostaria de te ouvir, mas você só soube me dizer: "Cada um com suas convicções. Eu tenho as minhas". Esses dias foram lindos e pena que isso não te importe. Que triste, pai! Eu queria tanto ter podido te telefonar e contar o que vi nas ruas, queria muito poder te dizer o quanto me orgulho das minhas raízes nordestinas. Queria muito te dizer que vi gente passando por cima das suas convicções em nome de um projeto maior. Precisava te falar que a vida da gente é dura demais, breve demais, intensa demais para não ser vivida com amor. Queria, pai, te falar do medo que sinto. Do medo de não poder viver e amar do meu jeito porque tem gente que acha errado e sujo. E quando pensei isso, pai, concluí que não faz diferença para você se eu vou poder viver com liberdade. Que triste, pai!

Ontem a bolha estourou, passava um pouco das 19h quando foram anunciados os resultados quase definitivos da apuração presidencial. Fogos intensos, gritos raivosos de comemoração. Para a seleção de camisa da CBF era mesmo uma final de campeonato. Abaixo da minha janela um homem vociferava a plenos pulmões sua raiva. O alvo? O PT e o Lula, claro! Mas, não apenas, pai. Eu e você também somos alvo, sabia? Foi triste. É triste te ver naquele homem. Não que sua masculinidade seja manifesta daquele jeito doentio mas, porque sua irracionalidade é como a dele, sua incapacidade de ser empático é como a dele e, principalmente, seu ressentimento é como o dele.

Não existe bolha, afinal. No Condado das Laranjeiras, os ressentidos coléricos saíram do silêncio pois, agora estão representados: têm uma liderança que os faz sentir potentes, que os autoriza a urrar, a detestar, a desamar.

Hoje o dia amanheceu doído mas, amanhã, além de ser outro dia, vai ser o dia de reafirmar que no lado da calçada que eu escolhi para caminhar bate sol, tem festa, amor e batucada. O lado da calçada que eu escolhi para caminhar tem abraço, afago, acolhida e mãos dadas. O lado da calçada que eu escolhi para caminhar não tem pai mas, também, não tem ressentimento.

Que meus medos sejam tolos, que meu entendimento esteja errado mas, principalmente, que eu consiga ser capaz de ser reconhecida muito mais pelos afetos que pelos rancores.

Com amor,

Sua filha.


Comentários

  1. Meu amor, nossa calçada é larga, cabe o mundo nela... avante , atentos e fortes. Te amo. bjs

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  2. "Esses dias foram lindos demais....."
    Todas as emoções e sentimentos afloraram - angustia, medo, choro, alegria, abracos, arrepios.
    Ressentimento? Pra quê? Perda de tempo e de vida.

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  3. Uma lindeza!! Uma declaração de amor para quem, talvez, não saiba receber esse amor. Um beijo pra você!

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