DIÁLOGOS: COMO VOCÊ ESTÁ? ESTOU OUVINDO SIMONE.
- Como você está?
- Tá com tempo ou tá perguntando só por educação?
- Perguntando só por educação...
- Ah, que ótimo! Não aguento mais responder como eu estou!
- Deixa de ser antipática!
- Ué, não é antipatia... é que no geral não tenho como dizer que não estou bem. Mas, bem, bem, bem, ninguém tá, né? Mas, me fala você: como que tá? Quero ver se vai ter paciência pra dissertar...
- Não preciso dissertar, posso responder por tópicos: tô com medo do meu pai morrer, da minha irmã morrer... mais as pessoas morrendo sufocadas nas ruas...
- Tá bem, tá bem... vamos conversar sério.
- Eu estou conversando sério. Estou com medo mesmo. Eles se encaixam em vários grupos de risco, são cheios de comorbidades... claro que além desses medos reais tem a paranoia minha de todos os dias.
- Viu? A vantagem de praticamente não ter família é que não tenho medo de ninguém morrer... Vem cá, eu sei que você é materialista histórica e tradada e tal... mas, será que com esses medos todos não era bom fazer umas oraçõezinhas?
- Minha filha, tô fazendo toda noite!
- Ih, é grave mesmo então...
- E todo dia começo com um preâmbulo: ó Senhor, sei que sempre duvidei da sua magnificência, advoguei que crer em você era alienação... ó Senhor, onisciente, onipotente, peço desculpas por não ter lhe dado a devida importância, ó Senhor... e aí vou fazendo a lista dos pedidos.
- Isso aí, segura na mão de Deus... quer dizer... bate os cotovelos com ele... vai!
- Palhaça! E você? Já que não quer dizer como está me diz: o que está fazendo?
- Ouvindo Simone...
- Simone do então é Natal?
- Sim, Simone Bittencourt de Oliveira, mas, os discos 70/80...
- Cruz credo!
- Você é insensível... Simone tem seu valor. Por exemplo, o LP “Pedaços”, que foi o álbum de catálogo que deu origem aquele disco icônico de capa preta ao vivo no réveillon 1979/80...
- Não faço ideia do que você está falando...
- Eu fico aqui me perguntando o que é ter a “sensação das cordilheiras”...
...e, olha, como esse outro verso é lindo: “cada desejo é um açoite”...
- Ih meu Deus, pirou mesmo. Ó Senhor ... tu que és tão grandioso e generoso... tu, Senhor, que és amor... inclua também essa minha amiga no meu clamor!
- Se você não fosse tão hermética... estaria aproveitando nossos últimos dias com poesia e outras belezas que um dia a humanidade produziu. Porque, eu não sei se você já se deu conta, mas, isso que aprendemos a chamar de humanidade acabou. Estamos só vivendo o rescaldo.
- Agora entendo por que você fica com preguiça de responder como está... de otimista incorrigível até niilista é muita coisa pra explicar mesmo...
- Isso! Ao próximo que me perguntar “Como você está?”, responderei: Estou ouvindo Simone...
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Texto e Criação: Álibis & Alfarrábios
Música: Oxigênio de Javier Blank com Bordel Pixelado
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