Terrivelmente felizes
- De todos os tipos que transitam pelas repartições de hoje em dia, há um que encerra em si toda sorte de imbecilidade. Aquele que se auto denomina estratégico.
Diana sempre tinha uma frase definitiva. E apaixonada pelo seu próprio argumento seguiu:
- ... em geral, trata-se apenas de um conspirador tosco, um fofoqueiro banal, um vaidoso infantil...
De imediato fui enredada pela sua retórica e, assim, a conheci.
Há uns três anos trabalhávamos juntas e não me cansava de vê-la em ação. Pelos beócios, basais genuínos e quase cativantes, nutria certa compaixão. Com os arrogantes, divertia-se. Dos doidos, afastava os perversos. Aos autoritários, sim senhor!
Depois de quinze anos naquele lugar seu sistema catalográfico divertia-lhe a rotina. Não a julgo. Ao contrário. Era uma disciplina de sobrevivência. Como um preso que risca as paredes da cela foi ficando refém da sua sistemática. Não perdeu o humor, mas foi perdendo a fé. Cada vez mais certeira e cada vez mais entediada. O olhar acurado acabou por conduzir à enfadonha conclusão: não há no mundo mais do que cinco ou seis tipos disponíveis. Verdade, há nuances, mas sempre uma enorme estabilidade nuclear. Deus não fora tão criativo, afinal.
Estava lá e vi quando Diana viu. Como se ela estivesse fazendo anotações de campo, desatou:
- ... ares de grande dama. Deselegância explícita. Vejo dor em algum lugar, mas, dissimulada, faz tempo que perdeu qualquer espontaneidade. Não é de todo infeliz, a dona. Mantêm-se em destaque, seduz uns, despreza outros e jamais desposa o sorriso. Completamente lisa. Usa com fluidez autoral as expressões "pensar fora da caixa", "transparência", "liderança" e todos, rigorosamente todos, os clichês do mundo corporativo...
Assim, Diana esquadrinhou Joyce, prontamente classificando-a no tal grupo das estratégicas auto denominadas.
Arrogância: a burrice dos céticos. Quando Diana catalogou Joyce, deixou escapar um detalhe: em parte, Joyce conhecia sua própria miséria, não era alheia aos seus limites. Havia aprendido a dissolvê-los, sem abalo, como quem adoça café girando lenta e naturalmente a colher. Dissolveria, também, Diana.
Era festa de fim de ano, bebida e libido solta. A fumaça de fritura temperando o gelo seco. Alegrias desmedidas. Diana todo ano jurava que não ia, mas nunca resistia. Aquele era um momento perfeito para os seus rituais de deboche. Joyce, ao contrário, fazia daquilo sua glória. Redenção pelos outros 364 dias de atuação e, para deleite da plateia, libertava a mulata. Em posto de observação Diana começou apenas invejando-lhe as panturrilhas. Alguns copos depois e passou a desejá-la, com certo fastio, desprezava seu jogo triste. Joyce notou o escrutínio. Aliás, fazia tempo que notara. Já era fim de festa e eu, que já não possuía todas as faculdades, guardei só aquele instante: Joyce segurando com as duas mãos o rosto de uma Diana estática. E, sem sombra de hesitação, beijando-a com os exageros das histórias contadas. É só do que me lembro. Disso, e da clara impressão que a festa parou.
Tanta nota, tanta análise, tanto sistema, para cair em armadilha tão vulgar. Joyce nem precisou de muito, apenas fez-se improvável e Diana sucumbiu, vitimada de suas certezas fatais.
Ficaram famosas, ficaram faladas.
Pouco depois mudei de cidade fiquei quase um ano sem notícias delas. Ainda não sei dizer o que foi aquilo. Hoje, arrastando a sola do tédio pelas calçadas de Ipanema, vi Diana e Joyce comprando roupas numa daquelas lojas de beira de calçada que aspergem o frescor da burguesia. Joyce, intacta. Diana, oca de convicções, exibia a alegria dos alheios. Terrivelmente felizes. Não consegui me aproximar. Concluí que, de algum modo, ela havia voltado a ter fé.
Adorei!
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